Continuação da crónica "O assassinato de Sócrates" do livro: "Crónica dos dias bons" de Mário Anacleto
"Transcendentes os negócios do Estado, não podem passar sem mim, pensa o político de formação maquiavélica. Não podem passar sem mim porque eu sei governar a cidade, eu sei como tornar-me príncipe numa república… muito mal acham ao filósofo quando frequentemente lhes diz na cara que “o sapateiro não deve passar além da chinela!... Ao decidir o que devo fazer não tenho de dar ouvidos a nada a não ser à razão que tenho comigo, um ´dáimon´ que me fala, uma intuição lógica cujo contributo não devo desperdiçar. Faço aquilo que, depois de muita reflexão, me parece ser o melhor: o homem tem de se servir da sua própria visão interior para distinguir o bem do mal e não deve deixar-se guiar por aqueles que lhe dizem ser boa uma determinada acção”. Os detentores da verdade oficial cuidam que isto é indício firme de corrupção na cidade e no seu governo e em todas as esferas onde se incutem estas ideias e opiniões divergentes. Mas Sócrates insiste “ O artífice sabe o que tem de fazer e onde e como o deve fazer. Pode dar um relato claro do seu conhecimento e todas as suas acções estão inteligentemente relacionadas com o seu intuito. Os estadistas e os poetas não têm um tal conhecimento do verdadeiro sentido da vida púbica ou privada e nem sequer reconheciam a necessidade dele. Para uma recta conduta, são necessários conhecimentos claros. Ninguém pode ser conscienciosa, e consistentemente bom em saber o que é a bondade”.
Perante tão lúcida constatação e partindo do pressuposto que as coisas são como são mas que dever ser quase sempre como devem ser, isto é, a realidade viva e a ética viva de braço dado, é de perguntar se é lícito deixar que os políticos façam aquilo para que não estão preparados? É lícito permitir que ascendam ao topo da administração da coisa pública se nem contas sabem fazer? Se o que apenas querem é deixar estátuas e guerras, medos e instabilidade entre as pessoas, entre os estados que dizem governar? Que faríamos nós ao carpinteiro que não soubesse afeiçoar a madeira, segurar as partes de uma estrutura, ensamblar um conjunto de peças que constituam um todo?"
continua…